Agora sou o Vinci! Até à alguns tempos atrás tinha vários nomes! Perdi noção do que era, de quem realmente era, do que tinha e do que iria acontecer no minuto seguinte. Algum tempo atrás, eu estava nas ruas, sobrevivia nas ruas e utilizava as ruas como a minha casa.

Passei por tudo o que eu podia imaginar e ainda mais por tudo aquilo que nunca conseguiria inventar. Desde novo a paixão por mim, nunca foi aquela que eu desejava, mas a esperança continuava e eu também continuava a tentar. Um dia, chegou o momento da minha história, aquela que me ia acompanhar por largos e duros meses.

Estava o tempo de céu aberto, poucas nuvens e um calor que pedia água fresca. Estávamos no verão! Os meus olhos agora enevoados de tudo o que se passou, ainda lembram cada passo dado até aquele local cheio de sombra feita pelas árvores. A terra estava fresca, ouvia-se estalar das folhas secas, a cada pegada que dava. Eu não queria ir, a energia à minha volta e de todo daquele ambiente – que apesar de belo, assutava-me. Mais um puxão e eu continuei, outro e mais um. Ainda me recordo o roçar da corda sobre o meu pescoço e os leves puxões que sentia conforme se mexia a corda castanha. Um puxão mais brusco determinou todo o meu percurso até hoje. Agora estava confirmado que a corda à volta da árvore estava bem presa. Levantei os olhos uma última vez e bem profundamente no olhos de quem me prendeu. Mas um olhar muito breve virou-me as costas e apenas vi a silhueta até ela também desaparecer no horizonte, juntamente com qualquer esperança que tinha dentro de mim.

Olhei para um lado e vi árvores grandes que se estendiam até perder o olhar, olhei para o outro e a mesma coisa se passava. O cheiro a eucalipto fazia-se sentir intensamente cada vez que parava de ladrar e inspirava para ganhar forças para mais uma tentativa. Estava num pinhal, um grande pinhal! Seria um pinhal que iria levar-me para o outro lado do véu? Procurei em mim algum pedaço de esperança, mas com todo aquele enorme espaço de árvores, fazia a minha esperança parecer tão pequena. Passaram-se minutos, horas e não sei se dias, porque todos os segundos eram anos. Não havia água, nem comida, nem esperança, …!

– Grrrrrrhhhhhh. Grrrrrhhhhh.

Um som interior que vinha da minha barriga, lembrou-me que já não comia à algum tempo. Mas nem precisava de se ouvir o som para saber que tinha a boca seca e uma enorme sede. Alguns raios de sol furavam as sombras das árvores e tocavam-me na pele como lazers. Fechava os olhos e tentava imaginar momentos melhores, momentos que vivi, e momentos que nunca tinha vivido, mas que tinha sonhado. Agora eram a minha única companhia, juntamente com aquela árvore que sentiu tudo o que eu senti, sem nada poder fazer, e fechei os olhos.

De olhos fechados ainda conseguia perceber a suave dança das folhas, que o pouco vento lhes oferecia. Ouvi estalar, e o saltar de uma pinha despertou-me. Irrequieto comecei a mexer-me, sentia o cheiro de alguém a aproximar-se.

– Não posso ficar parado. Pensei.

Uma figura alta apareceu perto de mim e eu simplesmente fiquei estático. Sabia que tinha de fazer alguma coisa, mas os músculos do corpo não me deixavam reagir. A figura aproximou-se e vi que era um humano-macho. Esticou a mão, naqueles segundos pensei em tudo, “vai bater-me?”, “vai matar-me?”, “vai magoar-me ainda mais?”, “vai doer!”, “vou morrer!”, “vou sofrer!” e em segundos vi-me solto daquela árvore que acompanhou todos os segundos que estive preso. Corri, corri, corri o mais que pude, perto daquele sitio não queria mais estar. E a minha história começa aqui.

Durante 1 ano andei pelas ruas do Cacém (uma cidade na zona de Sintra – Portugal). Meses e meses, em que fazia do céu o meu teto. Durante muito tempo estive por minha conta, circulava todos os cantos do Cacém, becos sem saída, ruas calmas, umas escuras outras muito bonitas, mas acabava sempre por encontrar alguém que me queria mal.

Ouvi risos de crianças lá ao fundo, curioso fui ver o que era, se estavam a rir também queria saber do que era e rir com eles, no meio de tanto sofrimento, queria encontrar alguma alegria. Eram uns 7 ou 10 miúdos riam-se e movimentavam-se estranhamente, mas até aqui eram apenas crianças. Tinham brinquedos nas mãos e fui até lá curioso para ver o que era. Naquele momento senti uma dor enorme e mais dores similares vieram. Eram pedras que vinham na minha direcção. Mas porquê, porque é que me estão a magoar? Corri o mais que pude, até conseguir esconder-me num local que já tinha visto dias a trás. Deitei-me e fiquei ali até o sol nascer novamente. Não entendi porque é que me tratam desta maneira, o que fiz eu senão apenas existir aqui onde todos existimos? Serei diferente? Serei inferior? Eu sei que não e sei que sou importante, mas quando vivemos estas vidas de sofrimento, é impossível não ter medo e sentir receio de quem nos faz mal. E mais dias de sofrimento vieram. Mais crianças me bateram e atiraram pedras, mais humanos assustaram-me e escorraçaram-me com cadeiras, bengalas, com os pés, gritaram, sacudiram-me e bateram-me.

– Não confio mais em nenhum humano, não me aproximo de mais nenhum.

Vejo uma senhora ao fundo com alguma coisa na mão e já sei que vou ter de correr o mais que puder. Mas ao mesmo tempo o que ela tem na mão cheira tão bem e eu estou com tanta fome.

– Porque sorri para mim? Vai enganar-me de certeza e vou ter de correr novamente.

Ela deixa qualquer coisa no chão e chama-me. Mas o cheio daquilo que ela trouxe chama-me mais e mais alto ainda. Ela afasta-se e eu aproximo-me. Devoro em segundos aquela deliciosa refeição como já não me lembrava. Ela pareceu-me boazinha, mas poderá ter outras intenções. Vejo-a mais vezes e mais vezes, ouço-a comentar com quem está com ela que eu estou muito magro. Que tenho as costelas e muitos ossos praticamente à mostra. Que se não comer não aguento! E pode ser verdade, mas para quê comer se depois da refeição não há mais nada. Depois dela mais humanos e humanas me trazem comida. Já sabem como é – deixem ficar aí que quando se afastarem eu vou. Prometi a mim mesmo que não deixo nenhum humano tocar-me. Não confio, já não consigo.

O Cacém torna-se maior, conheço mais sítios e cada vez mais humanos. Uns continuam na mesma e eu fujo deles. Outros fazem-me provar deliciosas refeições. Neste sitio existem imensos cães, quase todos têm trelas e têm alguém sempre do lado deles. Eles dizem-me que estão felizes, mas como é possível. Será que só eu conheci o sofrimento? Brincamos, corremos e mordemos com carinho. À vezes dos humanos deles tentam chegar-se perto de mim, mas já sei que podem-me fazer mal. Ouço-os dizerem que querem apanhar para me levar, mas para onde? E se voltar a acontecer o mesmo? Preso nunca mais quero estar.

Num café estão alguns humanos que já sei que não gostam de mim. Passo distante e mesmo assim parece que os incomodo. Um levanta-se e vem atrás de mim, fujo o que mais posso. Conheço um sítio onde me posso esconder. Ouço uma travagem e não tenho reação nenhuma. O carro bateu-me, mas não quero ser um alvo neste momento. Levanto-me e continuo a correr, mas a minha pata já não está a mesma. Dói muito e mal a consigo colocar no chão, mas corro e corro muito.

Estou cansado! Hoje está a chover tanto, tenho fome e frio, dói-me a pata traseira. Vou ficar aqui na relva, um bocadinho estou tão cansado. Senti-me doente e sem forças, sem vontade de continuar aqui. Vieram até perto de mim aqueles humanos bonzinhos e eu fugi. Porquê? Porque não confio no que pode vir a seguir. Um humano aproxima-se de mim eu sei que era para ver como eu estava, o amigo cão dele diz que ele é bonzinho para ele, mas eu não consigo confiar e fujo. Durmo à vista, nos jardins, no meio do chão os cantos escondidos do Cacém são ótimas armadilhas e não quero ser um alvo fácil.

Passa um ano e eu continuo aqui. Nesta altura já tenho muitos amigos humanos, deixo-os fazerem-me festas, mas quando me tentam agarrar é que não gosto nada. Eu já disse que não confio, já não consigo confiar. Confio muito é nas chicas que andam pelo Cacém, sigo-as para onde elas forem, porque são mesmo giras.

– Oh não, isto é fechado. Mas eu só segui aquela cadelinha tão gira. Como é que eu saio?
– Acalma-te meu lindo, vamos tratar de ti. Diz a humana que eu gosto e que tem umas amigas cadelinhas muito giras.
– Mas não entendes que eu quero sair? Não quero estar aqui. Não quero!

Vejo uma pequenina saída por umas plantas e sei que se fizer força consigo sair deste espaço. Foooorça, fooorça, só mais um pouco e… ai elas estão a agarrar-me, forçaaaaaaaaa… ahhh consegui, uff, novamente no sítio que sei que não me fazem mal.

Uma semana depois estava distraído e agarraram-me. Levaram-me de carro para uma vivenda. Novamente, tenho de sair, como me fui distrair. Ahh subo isto e agora isto e… ahhhh rua que bom. Mas, que local é este? Não estou no Cacém? Tenho de encontrar o Cacém. Ando e ando atrás dos cheiros e consigo novamente encontrar o Cacém. Tenho de ser mais cuidadoso.

Hoje é um dia histórico, mas ainda não sabia. Depois de ter comido a minha refeição à porta de vivenda que tem sempre lá comidinha e água para mim, aproveito para dormir um pouco. Está calor. Mas algo acontece de um momento para o outro, vejo uma humana com uma trela na minha direção. Consegui levantar-me a tempo e fugir… oh não ela agarrou-me. Choro o mais alto que posso, é hoje que vou voltar a sofrer. São dois agora a agarrar-me. Au! Ele agarrou-me o pescoço, tive de o morder. Ela meteu-me uma trela. Oh nãoooooo. Novamente nãoooo. Pegou-me ao colo e levou-me para dentro de um prédio de uma senhora que me dá comida e que eu gosto tanto, mas se não é para entrar, porque me estão a fazer isto? Agora levam-me para dentro de um carro. Outra vez para um sitio que não conheço? Não consigo parar de tremer, por mais que queira, sei que me vão fazer mal. Levaram-me a um médico (sei que é médico por causa do cheiro a medicamentos e daquela bata que só apetece fugir). Mas nem os meus músculos me deixam fugir.

Levaram-me para uma casa, fecharam-me num quarto. Sei que me deram comida e água e tocam-me. Mas eu tremo e não consigo parar de tremer. O pânico é horrível, não quero que me batam novamente. Deixam-me aqui fechado, mas dormem no mesmo sitio que eu. Tenho tanta fome, mas não sei se como o que me estão a dar. Mas a fome é tanta, como os biscoitos quando estão a dormir, pode ser que não reparem. No dia seguinte repararam que eu comi os biscoitos, mas metem lá mais. Levam-me à rua de trela como vejo os meus amigos, mas prefiro que me deixem em qualquer lado e não me levem para casa novamente. Mas eles levam, quando não quero andar, levam-me ao colo. Mas depois em casa dão me miminhos. Começo a gostar deles, chama-me bebé. E tratam-se por papá, mamã e avó. Existem gatos em casa, que gostam muito de vir ter comigo, mas já lhes disse – se eu estiver deitado ainda não podem vir ter comigo. Não sou eu, é a minha confiança que não permite ainda. Mas acredito que um dia deixo-vos. Vocês até se portam bem. A tartaruga é que assusta um pouco a andar. Vem sempre direta a mim. Mas acho que até é fofa.

Passam-se semanas e até mesmo 1 mês. ADORO. Eles fazem-me falta agora. São tudo aquilo que eu não sabia que existia. Afinal os meus amigos cães falavam verdade. A trela nem é má, a papinha é maravilhosa e os miminhos fantásticos. Ganhei uma família, uma mesmo a sério. Quando pensava que devia desistir, que a esperança seja uma palavra pequena ou grande, existe e por isso temos de continuar a acreditar. Não acreditei, mas agora acredito.

Hoje já faz 76 dias que estamos todos juntos. Os gatos, a tartaruga, a mamã, o papá e a avó. Somos uma família feliz, somos uma união de amor. E é este amor que eu quero partilhar convosco todos os dias, quero partilhar com outros cães que como eu sofreram e sofrem diariamente. Dizer-lhes que a esperança acompanha o amor e o amor está sempre ao lado da evolução. Hoje sou o Vinci (como o Leornado da Vinci), como me deram este nome, já sei que posso ser teimoso, determinado e muito criativo nos meus passeios.

Sou o Vinci do Cacém. Os papás criaram uma página no facebook, para partilhar a minha história, mas também para partilhar histórias de outros que como eu sofreram e sofrem. Que procuram uma casa e uma fantástica família como eu. Podem acompanhar toda a minha história em vídeos e fotografias em Vinci Do Cacém. Podem seguir, comentar e partilhar para dar esperança a muitos mais animais que sofram diariamente.

Vinci, quanto te resgatámos não sabíamos que eras tu que nos estavas a resgatar <3